Esses dias fui ao clube com uns amigos e uma amiga minha em particular levou sua filha que, se não me engano, devia ter uns 13 anos. Gosto de pensar que sou uma pessoa muito sociável e me preocupo em integrar o grupo (ou seja, sou um tagarela inveterado).
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Como senti que a menina estava deslocada (afinal, todo mundo no grupo tinha mais de 30), puxei conversa.
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- E ai Erika, o que você tá ouvindo? (ela tinha um IPOD no ouvido)...
- Umas musicas antigas da minha mãe... (respondeu num tom entediado como se eu a tivesse incomodando...)
- Humm.. antigas é? Posso ouvir? (ela me passou um dos fones, sem tirar o outro do ouvido..) .
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Eu esperava um "Great balls on fire" do Jerry Lee Lewis, talvez um James Brown... mas o que eu ouvi naquele fone de ouvido me fez tremer. Eu olhava para a Erika com uma expressão de horror. Meus olhos se encheram de lágrimas enquanto no meu cérebro ecoava: "The boy with the thorn in his side,
behind the hatred there lies a murderous desire for love..."
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-NÃÃÃÃÃOOOO!! (Pensei!)
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Puxei o plug que me conectava com a musica para voltar ao mundo real, assim como o Neo fez com os "Plugs" que o conectavam a matrix!.
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Era "The Smiths" que tocava. THE SMITHS! Não era "musica antiga"!! - Estava tocando nas rádios um dia desses! Eu lembro. A Erika me olhava assustada. Tentei me recompor (para não jogar seu frágil corpinho por cima da cerca). Naquele instante fui tomado por uma nova consciência. Um novo saber que mudou minha vida a partir daquele momento. Minha musica, a musica que embalava as minhas noites não muito tempo atrás, era agora "musica antiga" (TCHAN-TCHAN-TCHAAAN!).
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Ainda atônito, devolvi os "plugs" de volta para ela e disse sorrindo (tentando não parecer ofendido): - Nossa, ouvi muito essa musica. Era tema de boa parte das fitas que eu gravava para dar de presente. E entenda que a fita era completamente diferente do que o CD é hoje, ou ainda do MP3.
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Gravar uma fita era a expressão máxima dos sentimentos de um homem para uma mulher ou mesmo da amizade entre amigos. A fita era um presente que representava o "sentimento". Eu explico: (Curiosa, a Erika retirou os plugs do ouvido).
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Naquela época, para se gravar uma fita para alguém, você tinha que ter:
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1) uma seleção de Lps (isso se você quisesse gravar uma coletânea);
2) Força nos braços para carregar sua seleção de LPs (Já carregou 30 Lps Juntos?);
3) Uma mão firme para colocar a agulha na faixa certa sem riscar todo o disco;
4) E paciência, muita, muita paciência...
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Uma única fita levava horas para ser gravada. Era praticamente um ritual.
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- Você ligava o som e escolhia o LP (esse era, por si só, um trabalho tremendo porque era a musica que abriria a fita, você já tinha que acertar de primeira).
- Depois escolhia a faixa que você ia gravar (algo que fizesse ela se derreter na primeira audição e ao mesmo tempo, a deixasse curiosa quanto ao que viria a seguir, fazendo-a, acima de tudo lembrar do quão interessante você é);
- Você coloca o disco no aparelho de som;
- Nesse momento (está prestando atenção?) você tinha que "pousar" a agulha na exata divisa da faixa anterior a musica que você pretendia gravar (uma única miopia e você estava inabilitado para esse trabalho).
- Agora, finalmente, vem a parte mais importante e perigosa desse trabalho. Esperar o início da musica. Sim, é verdade. Porque para gravar uma boa fita, você tem que calcular os poucos segundos prévios antes da musica começar para se poder iniciar a gravação. Só um momento entre a pressão dos botões e o início da musica - Muito tempo antes e você teria um grande espaço de silêncio na fita. Segundos depois, a musica já teria começado. A tênue linha entre o sucesso e o fracasso estava em suas mãos. Um espirro nesse momento e tudo estava perdido. O suor escorre pela face. Olhar fixo na faixa enquanto os ouvidos calculam o momento certo para apertar os botões. (tic-tac-tic-tac). Nas caixas de som, ecoa o ruído da agulha correndo o disco. Ninguém respira. Era um trabalho para "Ethan Hunt" de "Missão Impossível". Só no momento certo, e não antes, apertava-se o REC e o PLAY juntos. MISSÃO CUMPRIDA! (toque o tema final de missão impossível!).
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Era esse ritual o tempo todo. Faixa por faixa. Um erro, uma única tremida sequer e vc tinha que começar o processo de novo.
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Na boa, se isso, se todo esse trabalho não for entendido como uma declaração de amor, um símbolo da amizade, eu não sei dizer o que mais pode ser. Tudo por uma mísera fita. E olha, as meninas reconheciam. Elas sabiam do trabalho que dava fazer tudo isso. Pelo menos, 30% delas sabiam. (os outros 70% achavam que nós eramos vagabundos e que não tinhamos nada pra fazer...).
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Depois de todo esse discurso percebi que a Erika me olhava com aquela expressão de respeito e admiração. Era como se, apesar da tenra idade, ela tivesse realmente compreendido tudo aquilo que eu acabava de dizer.
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Eu podia ler em seu rosto. Havia um olhar de "saudade". Saudade de uma época que ela não viveu? Sim, estranho, ou talvez nem tanto. O sentimento de não ter vivido uma época mais ingênua, menos cínica e bem diferente daquela em que ela se vê presa hoje. Escrava de MP3, celulares, internet, câmeras digitais, orkut e vários outros gadgets tecnológicos. Uma época mais simples.
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Só então a Erika se volta para mim, e com os olhinhos brilhantes pergunta:
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- O que é LP?
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(Sério, eu vou jogar essa menina pela cerca!)
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No fim de tudo isso eu percebo que... Sou um péssimo fisionomista.
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Esse post é dedicado a todos aqueles que não conheceram o vinil.
4 comentários:
DINOSSAURO HAHAHAH
btw, excelente post!
Sensacional, Eron. Mas por que você não apertava o play, o rec e o PAUSE juntos e somente soltava este último na hora de começar a gravar? ;)
Abraços,
Porque isso faz tanto tempo que eu não lembrava desses detalhe. É verdade, tinha o "pause"... mas isso não tirava a tensão da espera pelo momento certo... Além disso, eu só consigo me lembrar da tensão que era gravar a fita..rs..
De qualquer forma, obrigado pela ótima dica com um péssimo "timing".. Chegou atrasado uns 15 anos.. rs
Ainda assim, valeu ! rs
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